O filme do Coringa é sem sombra de dúvidas um sucesso. O personagem que já tinha um grande número de fãs nas Hqs agora certamente alcançará um número ainda maior devido ao seu longa metragem. Mas a que se deve esse sucesso ou identificação com relação ao personagem?
O Coringa traz em si algumas representações arquetípicas, mas focaremos aqui em quatro desses arquétipos que se vem encarnados na figura do palhaço do crime. Falaremos aqui do Arquétipo do Louco, do Palhaço, do Trapaceiro( trickster) e do Arquétipo da Sombra. Mas antes de adentrarmos nessas especificidades, vamos a definição de Arquétipo dentro da Psicologia Analítica.
Os arquétipos são definidos por Jung (2002) como imagens primordiais, sem forma definida e de caráter instintivo, que residem e são partes constituintes do Inconsciente Coletivo, que se manifestam de diversas formas distintas. Segundo o autor, estes apresentam conteúdos que se referem ao próprio Inconsciente Coletivo, com isso o arquétipo é então per si não somente material advindo do Inconsciente Coletivo, mas também constituinte do mesmo. O Arquétipo é sempre uma representação imaterial do conteúdo presente no Inconsciente coletivo. É através dele que se tem acesso a toda essa gama de conteúdo ainda não consciente e que aparece em qualquer cultura independente do tempo, pois, segundo Jung (1985) esta é uma manifestação simbólica hereditária, que se forma a partir da Psique primitiva e vem sendo transmitido geração após geração, contemplando em si possibilidades de significação de vivências e experiências compartilhadas por todos. Com isso podem-se observar diversas temáticas que se repetem nas mais diversas culturas e, embora possuam uma temática central denominada núcleo, na qual gira em torno de uma narrativa em comum, elas possuem elementos que são individualizados de acordo com o contexto cultural em que se constitui.
Fora as recordações pessoais, existem em cada indivíduo as grandes imagens primordiais. Ou seja, a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como era nos primórdios. Essa hereditariedade explica o fenômeno, no fundo surpreendente , de alguns temas e motivos de lendas se repetirem no mundo inteiro e em formas idênticas, além de explicar por que os nossos doentes mentais podem reproduzir exatamente as mesmas imagens e associações que conhecemos dos textos antigos[..] Isso não quer dizer, em absoluto, que as imaginações sejam hereditárias; hereditária é a apenas a capacidade de ter mais imagens ,o que é bem diferente e a essas imagens ou motivos, denominei-os arquétipos (JUNG, 1981, p 57)
Segundo Jung (1985) “o arquétipo é uma imagem que tem sua raiz no mais longínquo Inconsciente, uma imagem que vem de uma vida que não é nossa vida pessoal e que não se pode estudar a não ser se reportando a uma arqueologia psicológica”. Para o autor, não basta representar os arquétipos como símbolos. Se faz necessário entender que estes são símbolos motores. Por serem símbolos motores, os arquétipos dizem sempre respeito a conteúdos que, embora possuam uma interpretação de representação ampla e coletiva, através da observação de sua manifestação percebe-se que esta representação é fundamentada a partir das elaborações que a Psique individual concebe para significá-los.
Então, a gente pode simplificar tudo isso dizendo que os Arquétipos são como se fossem “instintos para uma interpretação simbólica”, assim como a gente carrega instintos inatos como os de sobrevivência, segundo Jung carregariamos os arquétipos que permitem essa interpretação simbólica semelhante, e seriam os elementos que formam o Inconsciente Coletivo.
Pode-se perceber a energia especifica dos arquétipos quando se tem ocasião de observar o fascínio que exercem. Parecem quase dotados de um feitiço pessoal. Qualidade idêntica caracteriza os complexos pessoais; e assim como os complexos pessoais têm a sua história individual, também os complexos sociais de caráter arquetípico têm a sua. Mas enquanto os complexos individuais não produzem mais do que singularidades pessoais, os arquétipos criam mitos, religiões e filosofias que influenciam e caracterizam nações e épocas inteiras (JUNG, 2005, p.79).
Ainda segundo o autor, a manifestação arquetípica, quando se dá na esfera dos fenômenos artísticos e religiosos, demonstra que os conteúdos tendem a aparecer ocasionalmente também sob forma Personalizada, individual do artista como figuras arquetípicas. Segundo Jung (2011) Como os arquétipos são fatores hereditários universais, sua presença pode ser constatada onde quer que se encontrem monumentos literários e artísticos que de alguma forma influenciam o comportamento humano, desempenhando um papel importante, pois exercem uma força dinâmica de equilíbrio da Psique.
No Coringa temos representados, pelo menos,quatro arquétipos, mas o que efetivamente isso quer dizer? Bom, quando um personagem se torna uma imagem arquetípica cria-se uma possibilidade de que os sujeitos projetem seus conteúdos inconscientes sobre ele. Existe um mecanismo psicológico nesse caso chamado de função transcendente. Nosso inconsciente e nossa consciência não se comunicam da mesma forma. A linguagem do Inconsciente é simbólica e a linguagem da consciência busca a lógica, e a função transcendente é um recurso que o inconsciente usa pra tentar se comunicar com a consciência, só que como essa comunicação não pode ocorrer diretamente o Inconsciente elenca simbolos como forma de explicitar a mensagem que ele quer passar esperando que a consciência entenda o recado. Quando um sujeito se identifica com um personagem, é a função transcendente falando” se liga que tem algo nesse símbolo que é importante”.
O conteúdo presente nas Histórias em Quadrinhos, de alguma forma, traz em si as experiências que são reflexos do cotidiano e do contexto social, e por isso pressupõe-se que realizam esta capacidade de mobilizar mais do que apenas seu criador demonstra. De acordo com Jung (1986), o significado particular de uma verdadeira obra de arte reside no fato de que pode escapar das limitações do pessoal e elevar-se para além das preocupações pessoais de seu criador. Com isso, pode-se considerar que, a partir do momento o qual a interpretação artística traz em si elementos que são de caráter geral, as Histórias em Quadrinhos também podem permitir este tipo de interpretação, pois estas manifestações indicam a possibilidade de transmissão de material arquetípico através do Inconsciente Coletivo. Jung (2011) acrescenta ainda que a existência do Inconsciente Coletivo indica que a consciência individual não é absolutamente isenta de pressupostos. Para o autor, ela encontra-se condicionada em alto grau por fatores herdados, além de possuir a capacidade de influenciar o ambiente social.
Toda essa movimentação criada, pelos personagens das histórias em quadrinhos enquanto reflexo social, vai de acordo com a possibilidade de representação do Zeitgeist , que a arte possui. Segundo Hegel (1992), o Zeitgeist, é definido como o espírito de época, é o movimento que existe na sociedade dentro de um momento no tempo. Esse espírito de época mobiliza os sujeitos que vivem nele de alguma forma como uma influência no contexto sócio-histórico-cultural através da manifestação artística, que representa sempre um conteúdo a ser expressado e conceitualizado
Nesse sentido, pressupõe-se aqui que o Zeitgeist é uma manifestação arquetípica oriunda do inconsciente coletivo, por isso se faz capaz de manifestar-se não apenas individualmente mas sim coletivamente, É por conta dessas manifestações arquetípicas que os heróis e personagens surgidos nas Hqs estariam relacionados com uma necessidade coletiva pois, através da função transcendente, que segundo Jung (1998) é a possibilidade do inconsciente reconhecer em elementos externos conteúdos que agregam a seu próprio desenvolvimento ou equilíbrio os heróis que se difundem em dado momento histórico conseguem cumprir essas função principalmente por serem manifestações de temas arquetípicos. Consideramos aqui então as histórias em quadrinhos enquanto manifestação artística dotada de potencial de interpretação simbólica , e o Zeitgeist enquanto manifestação arquetípica, e por isso dotada dessa potencialidade de influenciar e ser influenciado pelo contexto sócio-histórico.
Dito isso, podemos passar para em que contexto a mitologia construída nas Hqs assume um caráter mais denso e cruel, como a realidade fora das páginas. Esse movimento se inicia na decáda de 70, depois do afrouxamento do código de censura que os quadrinhos sofreram. Nesse momento, os quadrinhos passam a refletir uma abordagem que se torna cada vez mais realista. E com a diminuição da censura nos quadrinhos os temas como violência, efeitos psicológicos da guerra e drogas começam a tornar-se constantes, os heróis passam então a ser vistos de maneira mais humana e tendo que lidar com situações mais cotidianas. Os colants coloridos vão dando espaço pra uma narrativa mais nua e crua de como a sociedade é mais complexa do que simplesmente salvar o dia. As tramas se tornam progressivamente mais políticas e sociais e isso se intensifica na década de 80 e a partir daí podemos ver cada vez mais presente conceito analítico descrito por Jung (1998) como Sombra, a parcela da Psique em que encontram-se muitas vezes conteúdos reprimidos e pouco aceitos socialmente e que iremos elaborar melhor mais a frente.
Agora que já está explicada a base na qual se fundamenta esse texto, podemos finalmente falar especificamente do Coringa. Embora esteja presente desde os primórdios das narrativas do homem morcego, ele já passou por diversas transformações e reformulações ao longo dos seus 80 anos, mas algo que sempre foi marcante é o contraponto que o coringa representa a rigidez do Batman. Mas pra pensarmos isso a gente precisa primeiro pensar o que representa Gotham City e como ela é fundamental par aa constituição do Coringa em ser como ele.
A cidade de Gotham e de Metropolis são consideradas contrapontos. Enquanto Metropolis representaria os aspectos nobres e positivos do ser humano, sempre pensando em seu futuro e evolução, a cidade de Gotham representa o que existe de pior na constituição humana. A cidade é sempre representada com alto índice de crimes( incluindo crimes hediondos), alta taxa de corrupção política, abandono das políticas sociais, ruas escuras e becos sinistros onde os sujeitos estão sempre sujeitos a serem atacados, a polícia de Gotham tinha a maior taxa de corrupção. Gotham em essência é uma cidade sem esperança e sem perspectiva de melhora desde que o primeiro Wayne pisou naquelas terras.
E ai, emerge a primeira representação arquetípica que se manifesta no Coringa, o aspecto coletivo do Arquétipo da Sombra. Quando a gente pensa na Sombra, deve lembrar que ela é a parcela da nossa personalidade onde crescem os aspectos que são reprimidos por serem socialmente inadequados em determinados contextos e principalmente a sombra é o que nos faz projetar esses conteúdos inconscientes que não queremos dar conta, nos outros. A Sombra é responsável por abrigar os conteúdos que não são plenamente aceitáveis à primeira vista. É nela que se encontram elementos os quais Ego, através da repressão, não consegue integrar.
A sombra, segundo Jung (1998), é aquilo que um indivíduo, por vezes,não tem desejo de ser. Ela, representa uma parcela do que você é mas de certa maneira não lhe é permitido, representa anseios e desejos, é uma fonte instintiva que se contrapõe ao Ego por sua liberdade e não necessidade de lidar com as dificuldades da realidade, haja vista que está imersa no Inconsciente vindo à tona apenas em rompantes, sendo assim conclui-se que a sombra não tem pretensão moral ou necessidade de regras.
“Infelizmente, não há dúvida de que o homem não é, em geral, tão bom quanto imagina ou gostaria de ser. Todo mundo tem uma Sombra, e quanto mais escondida ela está da vida consciente do indivíduo, mais escura e densa ela se tornará. De qualquer forma, é um dos nossos piores obstáculos, já que frustra as nossas ações bem intencionadas.” JUNG
Mas a Sombra é também esse “mau” latente e potencial , esse lado negro e inadequado que carregamos conosco. E nesse aspecto Coringa e Batman são duas faces da mesma moeda, eles encarnam esse lado negro, mas das suas personas, no caso do filme essa sombra não é a Sombra de Arthur que foi sendo reprimida, assim como o mesmo processo que ocorre com Bruce Wayne. Ambos encarnam a Sombra coletiva, todos esses aspectos da degradação de Gotham, se veem encarnados neles. A única diferença é que no caso do Batman essa sombra é direcionada e no caso do Coringa ela se manifesta em conjunto com um outro Arquétipo fundamental de sua constituição: O Louco.
O palhaço do crime, como também é conhecido o Coringa, serve muito bem como uma representação arquetípica do arquétipo do Louco. A figura do Louco sempre foi repudiada socialmente, ao longo da história humana, as sociedades sempre buscaram meios de afastar o louco do contato com os outros.
Em alguns momentos esse afastamento se dava por que eles poderiam ser detentores de alguma sabedoria divina, mas conforme as relações de poder social foram se estabelecendo essa segregação do Louco se faz principalmente por conta de um medo: o de enlouquecer também. O louco rompia com as normas sociais, tudo que era previamente estabelecido para manutenção da ordem social cai por terra mediante a loucura. E porque esse medo? porque a loucura é um caminho aberto para o inconsciente se manifestar, e nesses momento a primeira manifestação arquetípica a vir a tona é a Sombra, tudo aquilo que está reprimido ao longo de toda uma vida podendo ver a luz do dia
O Louco, é sempre visto como um transgressor que rompe com a ordem preestabelecida. NICHOLS (1995, p.36) aponta que “o Louco se acha em tão estreito contato com o seu lado instintivo que não precisa olhar para onde vai no sentido literal: sua natureza animal guia-lhe os passos”. Essa natureza instintiva é uma das características do Coringa, como vistas em diversas de suas aparições, como “Morte na família” de 1989, ou “A piada mortal”, que demonstram o quão aficionado é o Personagem com o rompimento da ordem social vigente. A autora acrescenta ainda que “Em algumas cartas do Taro, o Louco é retratado como se tivesse os olhos vendados, o que lhe enfatiza ainda mais a capacidade de agir antes por introvisão do que pela visão, utilizando a sabedoria intuitiva em lugar da lógica convencional” (NICHOLS, 1997.p,36). O Louco, sendo assim é imortal, pois ultrapassa as barreiras sociais,
E o que acontece quando temos contato com essa imagem arquetípica? Que efeito simbólico tem o Louco sobre nós? As reações ao Louco serão, naturalmente, tantas e tão variadas quantas forem as personalidades e experiências de vida dos que se defrontarem com ele, mas dificilmente se deparar com um Louco geraria uma experiência sem nenhum significado. Pois o ponto principal em que giram as possibilidades de manifestação dos conteúdos inconscientes está fundamentada no fato de que ao ser tocado por um Arquétipo sempre se evocará uma reação emocional de alguma espécie. Explorando essas reações inconscientes, podemos descobrir que efeito esse Arquétipo tem sobre nós Em resultado disso, da próxima vez que encontrarmos essa figura arquetípica na realidade externa, a nossa resposta não precisará ser tão irracional e nem tão temerária com o medo de que nosso Louco interior se manifeste, como aponta a NICHOLS(1995. p 37) “O nosso louco interior nos empurra para a vida, onde a mente reflexiva pode ser super cautelosa. O que se afigura um precipício visto de longe pode revelar-se um simples bueirozinho quando enfocado com a volúpia do Louco. Sua energia varre tudo o que estiver à frente, levando outras criaturas de roldão como folhas impelidas por um vento forte. Sem a energia do Louco todos seríamos meras cartas de jogar “
Em certa medida podemos pensar que o Louco fornece o espírito, ou ímpeto, para a ação. Ele “nos inflama” e se tem algo que o Coringa faz com o ´povo de Gotham no filme ou com a plateia que tem contato com a obra é causar algum grau de inflamação. O Louco dentro da gente se movimenta, nem que seja pra dizer que é precisa olhar pra ele de outra forma, ou que em algum aspecto é preciso romper com as regras que nos colocamos.
Como já apontado, o Louco traz a tona elementos da Sombra e aqui percebemos que nesses elementos ele trará o lado criativo da quebra e do rompimento da ordem. Em Coringa, os eventos que ocorrem no filme nos mostram o como esse rompimento força toda uma movimentação social que permite que esses conteúdos da sombra que estavam reprimidos pelo povo de Gotham ganhem corpo e forma..
Símbolo do fogo prometéico, o Louco arquetípico personifica o poder transformador que criou a civilização – e que também pode destruí-la. O seu potencial para a criação e a destruição, para a ordem e a anarquia, reflete-se no modo com que é apresentado no velho Taro de Marselha, onde o retratam seguindo à vontade,liberto de todos os estorvos da sociedade, sem ter se quer um caminho para guiá-lo;não obstante,enverga o traje convencional do bobo da corte, a indicar que ocupa um lugar aceito dentro da ordem reinante. (NICHOLS 1997.p.42)
Passemos agora para o Arquétipo do Palhaço, e acho que já deve ser possível perceber que todos os Arquétipos que constituem o Coringa, conversam diretamente entre si.Eles estão permeados e interligados e é sempre importante pensar isso, não dá pra “isolar” um Arquétipo pois ele não tem forma definida e por isso sempre se apresenta em conjunto com outros conteúdos simbólicos que dialogam com ele.
O arquétipo do Palhaço no Coringa representa, de certa forma, a quebra de rigidez Em muitos momentos, o Coringa serve para demonstrar ao Batman o quanto a sua busca por justiça é algo inútil e em vão, levando-o a ter que reavaliar seus próprios ideais. Tressinder (2003) aponta que, em seu simbolismo, o palhaço e o bobo representam as falhas humanas como bode expiatório, sendo capazes de desabar em farsa ou sabedoria, tornada de alguma forma em tolice.
Junior(2010) aponta que “Um palhaço é acima de tudo uma criação particular, uma exteriorização de algo extremamente íntimo e puro do indivíduo; uma essência que encontra no riso e no exagero a falta de barreiras para sua emergência. O palhaço não é um personagem que alguém apenas veste; o movimento é justamente o inverso, o personagem veste o palhaço. Cabe ressaltar, porém, que o verbete personagem é inapropriado para se referir ao palhaço, pois este último nunca é estanque e sua personalidade se desenvolve de forma conjunta com a do sujeito.” No decorrer do filme percebemos esse movimento na figura de Arthur de maneira constante, até o momento em que o Coringa se instaura. No pintar os cabelos e o rosto, o Coringa veste Arthur e se revela como sendo uma parcela intima de sua própria personalidade. O Coringa é o alinhamento entre os instintos reprimidos de Arthur e fragmentação que seu Ego sofre mediante as revelações que a trama o envolve. O Coringa em si, diferente de Arthur, não é desajustado socialmente é a sociedade que é desajustada aos seus olhos.
O palhaço é uma louca harmonia, que se apresenta em um estado primal, visceral e que não se prende a amarras, pelo contrário o palhaço subverte ele é a representação da subversão desde seu nascimento na idade média. É uma energia viva, é a sinceridade de se assumir limitado, de assumir a dor e ser capaz de rir com o objetivo de a transgredir.
“Um palhaço é um ser estranho que bota a mão no fogo, que põe a cabeça na guilhotina e que se expõe nu em sua tolice e estupidez. […] Ele não conta uma história engraçada. Ele é a graça, ele é o risível. […] Literalmente o palhaço dá a cara à tapa” ( Alice Viveiro de Castro)
E agora ao Arquétipo do Trapaceiro (Trickster). Podemos entender o Trapaceiro através da sua dualidade. Ele é por sua própria natureza ambíguo e dual . Junior(2010) define o Trickster como “Ele é de natureza animal e humana, maléfico e benéfica, sublime e grotesca. É o infantil e o adulto, ou melhor, o infantil no adulto. Ele é o infrator de normas,seja para fins civilizatórios, seja porque simplesmente quis cometer tal violação.”
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“Sob outros aspectos ele é mais estúpido que os animais, caindo de um ridículo desajeitado a outro. Embora não seja propriamente mau, comete, devido à sua inconsciência e falta de relacionamento, as maiores atrocidades. […] O trickster é um ser originário “cósmico”, de natureza divino-animal, por um lado, superior ao homem, graças à sua qualidade sobre-humana e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez inconsciente. Nem está à altura do animal devido à sua notável falta de instinto e desajeitamento. Estes defeitos caracterizam sua natureza humana, a qual se adapta às condições do ambiente mais dificilmente do que um animal. Em compensação porém se candidata a um desenvolvimento da consciência muito superior, isto é, possui um desejo considerável de aprender,” (Jung,2000)
Ao Trickster, é permitido ser o que o homem comum não permite, um contestador da ordem independente das consequências . Ele age como um motor ao status social e ludibria a ordem. Esse Arquétipo se faz presente como uma forma de rompimento, uma exposição do social, bem como faz o Palhaço ao qual está intimamente ligado. A sua percepção de mundo se vê diferenciada como apontado na citação acima pelo velho Jung e pela citação de Queiroz abaixo
“O trickster colocaria em jogo assim o inesperado o indefinido desrespeitando no nível do imaginário a própria ordem social, […] aos quais se concede licenças para zombar da ordem estabelecida quebrando aparências e desfazendo ilusões “Muito embora as transgressões cometidas por tais figuras sejam autorizadas pela sociedade a própria ordem acabaria sendo assim reforçada por meio de um processo catártico,e ainda com o mérito de revelar aos seus integrantes a desordem que poderia se instaurar caso as normas, os códigos e os interditos viessem a se dissolver, elemento a um só tempo, perturbador e agente da ordem decorreria disso a ambiguidade do trickster (QUEIROZ, 1991, p. 96)
Considerações finais
A piada no Coringa, é a degradação da cidade de Gotham, a piada no Coringa é o próprio homem que foge da sua própria Sombra e a projeta sobre outros, a critica aos cuidados a saúde mental e as doenças mentais é o desfecho dessa piada que sê vê representada por todos esses Arquétipos incorporados pelo próprio Coringa.
Ele é a imagem arquetípica representante da quebra da ordem, e como pudemos observar ao longo desse texto, os Arquétipos que o constituem estão intimamente ligados com essa desconstrução e exposição do próprio ser humano.
Em Coringa, vemos a pobreza de cuidado com a saúde mental, imposta tanto por questões sociais, como pelo descaso sofrido pelo personagem como sendo a fonte primordial de onde jorra todas as mazelas humanas. Expostas e escrachadas, falando ao Louco que reside em nós. O que Coringa vem nos dizer, enquanto simbolo é que a falta de estruturação da psique é capaz de romper com a realidade e que a ordem social, ou desordem, contribui para esse quadro.
Coringa é sem duvidas um poderoso aliado quando se precisa falar de saúde mental, de cuidados psicológicos e de como todo ser humano em potencial carrega um louco dentro de si. Quando a cidade de Gotham entra em chamas e furor, o que temos é essa Sombra coletivo correndo solta pelas ruas e clamando por uma reorganização.
Quanto aos perigos de gatilho e incentivo a violência, acho qeu talvez possa existir, mas a arte tem sobre tudo a função de ajudar a psique seja a se questionar, seja a questionar a realidade ou seja simplesmente causando algum impacto. Coringa mobiliza o louco em nós, a Sombra em nós e a quebra da ordem que ele provoca é uma quebra da nossa ordem interna. É impossível cruzar nosso caminho com um simbolo tão potente e sair ileso desse encontro. As forças que operam no inconsciente logo buscam maneiras de se alinharem com esse simbolo, e questionarem o que está posto. Seja como que cuidados estamos tendo com a saúde mental, nossa e de outros?Que efeito a sociedade tem nessa construção psíquica? Que incomodo é esse que o Louco provoca? Porque a as doenças mentais são assim ainda tão mal vistas e negligenciadas?
Coringa é a prova de que a vida pode ser uma merda, e que nem sempre é possível sorrir, não é pra ser heroico, não é essa a função do Palhaço. A função do palhaço é de expor tudo aquilo que a sociedade nega e finge não existir. Toda responsabilidade que se nega ter nesse rompimento do sujeito com a realidade se vê muito bem representada em Coringa e no fim o palhaço cumpre seu papel de expor a Sombra individual e coletiva e ilumina-la com chamas.
Esse texto de forma alguma tem o intuito de fomentar ações como as do filme, mas sim levantar uma reflexão de que existe um potencial simbolo no personagem e que fala diretamente ao Coringa dentro de nós. alguns sujeitos, por diversas questões acabam dando vazão a isso e talvez por isso ele seja um personagem que fascina tanta gente. Mas o fato fundamental é que, dadas as devidas circunstâncias e a pobreza de cuidado todo ser humano é um Coringa em potencial, mesmo que em menores proporções.
Referências Bibliográficas
JUNIOR, A. L. S. O Trickster e o Palhaço: A Permanência da Transgressão. São Paulo,
JUNG, Carl Gustav. A psicologia da figura do “trickster”. In: Obras completas de Carl Gustav Jung, v.9, t.1. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 259
CASTRO, Alice Viveiros de
O Elogio da bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro:
Editora Família Bastos, 2005, p. 18.
QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 93-107, 1991, p. 94
JUNG, Carl,Gustav, O espirito nas artes e na ciência. Petrópolis Editora Vozes 1986
JUNG,C.G A dinâmica do Inconsciente,Petrópolis Editora Vozes 1998.
JUNG, Carl. Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Editora Vozes. 2011
JUNG. Carl. Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis Editora Vozes 2002
NICHOLS, Sallie. JUNG e o tarô. São Paulo Editora Cultrix, 1995
Grande contribuição! Tenho uma enorme identificação com o personagem e sempre soube que não estava ligada ao crimes, o texto conseguiu elucidar bem de onde vem essa identificação, uma vez que, muito do que foi levantado são questionamentos e contrapontos que eu faço sobre a sociedade. Muito obrigado pelo texto, está de parabéns!
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Olá Jordan, o texto está muito interessante.
Muito obrigado!
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Estou pesquisando sobre o arquétipo do trickster e cheguei aqui. Sou leigo em psicologia e entendi perfeitamente os conceitos. Texto bem escrito e cheio de referências, parabéns!
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